segunda-feira, 6 de julho de 2009

"Chega de Saudade" inaugura a Bossa Nova



Na batida de um violão anônimo, numa das faixas de um disco pouco vendido, tem início a Bossa Nova
A mulher de Vinicius de Moraes odiou os ?peixinhos a nadar no mar? e ?os beijinhos que eu darei na sua boca?. João Gilberto, cujo violão acompanhou Elizeth Cardoso na primeira gravação de "Chega de Saudade", em 1958, não foi nem citado nos créditos do disco. A música composta por Tom Jobim ficou mais de um ano na gaveta até ganhar uma letra, escrita por Vinicius, que teve de adiar sua ida a Paris, onde ocuparia um posto diplomático, para fazer os versos. Da discórdia e do acaso, surgiu a canção que inaugurou a bossa nova. Marco modernizador da música brasileira, "Chega de Saudade" revisita acordes simples do chorinho, num retorno à tradição mais clássica do samba. A novidade ficaria por conta, sobretudo, do violão de João Gilberto e um modo de cantar que se aproximava do jazz. Depois de passar uma temporada na Bahia, João Gilberto reencontrou Tom no Rio e lhe mostrou o que aprendera a fazer no violão. Segundo o relato do jornalista Ruy Castro, no livro que leva o nome da canção, Tom buscou nas gavetas partituras que pudessem servir para a revolução que João Gilberto propunha no violão, com idas e vindas do instrumento ora a favor, ora contra a voz do intérprete. As mesmas idas e vindas que fariam Vinicius declarar que nunca apanhara tanto da melodia para fazer uma letra. Um ano antes de sua gravação, no sítio da família em Poço Fundo (RJ), Tom definira as notas de "Chega de Saudade", um samba-canção em três partes que, como João Gilberto já vinha fazendo na Bahia, simplificava o ritmo do samba. Terminada logo depois da estréia da peça Orfeu da Conceição (1956), outra parceria de Tom e Vinicius, "Chega de Saudade" foi pensada para entrar no espetáculo, mas ficou de fora por falta de tempo. Só dois anos depois a música veio à tona, por outro acaso: uma gravadora minúscula, sem a menor vocação comercial, decidiu gravar a canção para agradar a contatos no Itamaraty. Tratava-se do selo Festa, propriedade do bem relacionado jornalista Irineu Garcia. Para sustentar o luxo de correr o mundo na companhia de poetas e intelectuais, Garcia pensou em gravar um disco de poemas de Tom e Vinicius. Melhorou o projeto quando sugeriu que, no lugar de poemas, fossem gravadas canções dos dois jovens na voz de uma diva da música popular: Dolores Duran. Mas ela pediu um valor alto demais, e coube a Elizeth Cardoso, preferida por Tom, cantar as faixas do disco histórico "Canção do Amor Demais", marco inicial da bossa nova. Na contracapa do disco de 1958, Vinicius se desfez em elogios a Elizeth, primeira voz do gênero: ?crestada pela pátina da vida, impôs-se como a lua para uma noite de serenata?. O resultado em vendas foi menos glorioso, mas Elizeth sacramentou seu nome como a primeira intérprete da canção que abriu um dos mais importantes capítulos da história da música brasileira. A batida da bossa nova, que se impunha ali, apesar da presença de uma diva intransigente (segundo Ruy Castro, Elizeth ignorava as instruções inovadoras de João Gilberto e cantava à maneira estrondosa da época), não passou despercebida, e meses depois João gravou, pela Odeon, seu próprio 78 rotações, interpretando "Chega de Saudade" com todas as novidades e maneiras bossa-novistas que, dali em diante, ganhariam o país e o mundo.